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Não era briga de gatos…

13 outubro 2017 - 18h34

Há muito tempo, quando eu era relativamente jovem, trabalhei numa fazenda com uma turma, tirando dormentes para a Estrada de Ferro. Naquele tempo, ainda com o cheiro do diesel e dos cadáveres que emanavam dos campos de combate da II Grande Guerra, há pouco terminada, não se encontrava trabalho em qualquer atividade; restou, como única opção tirar e lavrar os dormentes, atividade pela qual agradecíamos a Deus, por poder ganhar aquele dinheirinho para comprar alguma comida.

A turma de trabalhadores da qual eu fazia parte, era bastante unida e divertida e no meio dela havia três portugueses com suas estórias e seus indisfarçáveis sotaques lusitanos. A cada duas semanas levantávamos o acampamento montado no meio da mata e íamos para casa. Terminado o recesso de três dias, voltávamos para o acampamento para reiniciar o trabalho. E assim corriam os dias sob o barulho das machadadas e das risadas estridentes dos companheiros. Naquele tempo ainda não tinham inventado as moto-serras!

A guerra tinha queimado todo o petróleo extraído nos sete anos que durou (1939/1945) e os caminhões e qualquer outro veículo eram movidos a gasogênio (aparelho instalado nos veículos, para transformar madeira ou carvão vegetal em gás, usado como substituto da gasolina). Esses caminhões, com capacidade para pouca carga, vinham, periodicamente, buscar os dormentes.

Os motoristas desses diminutos caminhões movidos a gasogênio representavam para nós, que vivíamos a maior parte do tempo como índios, no meio do mato, figuras exóticas e interessantes, que despertavam curiosidade e uma ponta de inveja pela liberdade que eles desfrutavam. Aqueles homens trajando macacões sujos de graxa e carvão, sempre sorridentes, contando estórias de acontecimentos que diziam ter presenciado nas viagem que faziam, desfrutavam de especial atenção de todos nós.

Gostavam de conversar com a turma, no pouco tempo em que permaneciam no acampamento. Quando partiam, pareciam constrangidos em deixar aquele local tranqüilo e silencioso onde por horas contavam suas estórias, despreocupados e alegres. Para nós, contudo, parecia que estávamos perdendo algo com a partida dos caminhões, às vezes nossos espíritos, como viajantes clandestinos, embarcavam em cima dos dormentes que os caminhões levavam, e ali seguiam como as brisas das madrugadas. A imaginada viagem, fugaz e gratificante, rendia-nos novos alentos, para o trabalho.

Assim, por um largo período, foi a minha vida naquela fazenda no meio do nada, convivendo com os companheiros de trabalho. Nada de novo acontecia, além da ida para casa por três dias a cada duas semanas de trabalho e a chegada e partida dos caminhões. Numa dessas idas para casa, na volta um dos portugueses, o Joaquim, trouxe consigo uma gata preta. Era um animal bastante dócil com seu dono, mas em relação aos demais companheiros de trabalho, era arisca. Todas as tardes era comum ver a gata no colo do seu dono, com quem se dava muito bem.

Além da novidade registrada com a chegada do Joaquim com sua gata, o restante continuava tudo igual. Numa madrugada, enquanto todos dormiam, ouvi da gata um gemido, um lamento, um verdadeiro grito de dor que bateu fundo no meu peito. Passei a mão na espingarda e sai do acampamento já tendo como companhia o Joaquim, dono do animal, atrás de mim balbuciando palavras ininteligíveis.

Já fora, ainda no lusco-fusco da claridade matinal, vi uma onça jaguatirica atacando a gata, que tomada pelo pavor clamava por clemência. A onça, com um golpe, estraçalhou-lhe a barriga, por onde fluíram seus intestinos. Era um quadro aterrador, embora envolvesse apenas uma gata como vítima do ataque de outro felino, mas a gata preta era a coisa mais querida do companheiro de trabalho, o Joaquim, que ficou profundamente consternado com o que acontecia.

Cobri a onça na mira e mandei chumbo, ela deu um pinote e caiu mortinha. Corremos para a gata e tivemos que sacrificá-la, seu estado era lastimável e irreversível. O Joaquim estava transtornado e eu, verdadeiramente, encabulado. Já tinha ouvido os lamentos dos gatos antes e durante suas brigas, mas como um pedido de socorro, como aquele que a gata do Joaquim deu, nunca tinha ouvido. Confesso: fez-me arrepiar pelo gemido que ela deu, recheado de medo e pavor da onça que a ameaçava e depois atacou.

Aquele acontecimento revogou toda a alegria do Joaquim, até então conversador e contador de “causos” do seu Portugal. Ainda hoje, já passados tantos anos, parece-me ouvir no silêncio das madrugadas, aquele pedido de socorro desesperado e triste daquela gata.

O autor é membro da Academia Douradense de Letras. ([email protected])

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