Em parte por causa do ativismo conservador de alguns líderes evangélicos - especialmente no Congresso Nacional -, pastores e fiéis herdaram uma reputação de intolerância aos olhos dos defensores do Estado laico e dos direitos humanos.
Para muitos evangélicos, no entanto, a realidade é outra - em diversas vertentes religiosas, existem iniciativas que pretendem evitar a disseminação de ideias preconceituosas e a defesa dos direitos humanos nas igrejas.
Em São Paulo, por exemplo, o pastor batista Marco Davi de Oliveira coordena um grupo de estudos sobre raça e evangelho com o objetivo de combater o racismo dentro da igreja, enquanto a pastora metodista Lídia Maria de Lima organiza eventos religiosos para fazer um alerta sobre a violência doméstica e praticar o que chama de "teologia feminista".
A centenas de quilômetros dali, o teólogo batista e pastor José Barbosa organiza em Belo Horizonte o movimento "Jesus Cura a Homofobia", que busca combater o preconceito contra gays entre os evangélicos.
E eles garantem que há outros pastores fazendo trabalhos semelhantes em vários Estados brasileiros.
"Em razão do ativismo evangélico conservador no plano político e moral, os evangélicos têm sido muito mal vistos pela imprensa, por defensores da laicidade do Estado, dos direitos humanos e por grupos feministas e LGBT", diz à BBC Brasil Ricardo Mariano, professor de sociologia da USP e autor do livro Neopentecostais, que traça o perfil das igrejas evangélicas no país.
"Existem mais de 50 milhões de evangélicos no Brasil, um quarto da população, então é um grupo que não pode ser visto como um bloco coeso nem no plano político nem no moral. Há uma imensa pluralidade", afirma.
Demônios e racismo
Em 2011, o pastor evangélico e deputado Marco Feliciano (PSC-SP), disse em sua conta no Twitter que "africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé", o que provocou uma série de críticas de defensores de direitos humanos e variados grupos evangélicos.
Acusado de discriminação, o deputado disse não ser racista nem homofóbico, mas voltou a repetir, desta vez em sua defesa apresentada ao STF (Supremo Tribunal Federal) que a "maldição sobre a África" teria ligação com o "primeiro ato de homossexualismo na história".
O pastor batista Marco Davi de Oliveira diz ter vivido na pele os efeitos desse tipo de discurso que liga a negritude a maldições.
Alguns anos atrás, ao participar de um conselho de pastores em uma igreja da Assembleia de Deus, a maior denominação evangélica e pentecostal no Brasil, ele decidiu falar sobre o racismo dentro da igreja - e relata ter enfrentado uma reação violenta por parte de um líder evangélico, que prefere não identificar.
"Eu estava falando sobre a questão racial e um pastor começou a gritar dizendo que eu estava cheio de demônios, tentando dividir a igreja, que eu não tinha o espírito santo em mim e, portanto, não era evangélico nem cristão", conta Oliveira à BBC Brasil. "Isso só me fortaleceu porque percebi que, se causava tanto incômodo, devemos continuar falando sobre isso."
Oliveira organizou um grupo de estudos de raça com integrantes negros e brancos de diferentes segmentos evangélicos, batizado de Discipulado Justiça e Reconciliação.
"Temos batistas, pentecostais, presbiterianos, todos convivem muito bem", afirma Carlos Diogo, integrante do grupo.
"Dialogamos a questão racial na Bíblia e dentro das igrejas com base no livro de Frantz Fanon Pele Negra, Máscaras Brancas. Cada membro lê um trecho do livro e faz um resumo", explica - a obra citada por ele fala sobre a negação do racismo contra o negro na França e ficou conhecida por oferecer um maior senso crítico sobre o impacto do racismo na sociedade.
O grupo teve início na metade de 2016, com 20 integrantes negros e 10 brancos, e durou até novembro. Ao longo desse período, participou do Fórum de Igualdade de Gênero na Igreja Batista no Parque Doroteia (São Paulo), cujo pastor é Oliveira, e do Culto Contra o Genocídio da População Negra.
Oliveira diz ter retomado o grupo de estudos há uma semana, com novos integrantes.
"O nosso cristianismo nasce na África, Jesus Cristo era negro. Quando os negros começam a entender que a Bíblia é um livro escrito para povos negros, eles começam a se libertar, as meninas param de alisar o cabelo, deixam o cabelo crespo", diz.
Para o pastor batista, visões como a defendida por Feliciano no Twitter se devem a erros de interpretação do evangelho.
"O racismo está presente na igreja porque ela é uma instituição formada por gente. Há racismo por falta de compreensão do texto bíblico. Muitos acreditam que se aproximar da negritude é se aproximar do diabo, e isso oprime muitas pessoas negras."
Teologia feminista
Divergências em torno da interpretação dos preceitos bíblicos também se manifestam em outros temas sobre os quais há preconceitos.
Há, por exemplo, pastores que utilizam passagens bíblicas para justificar a subordinação feminina ao homem, afirma a pastora Lídia Maria de Lima.
"O que sempre aparece em discursos machistas são trechos que dizem que a mulher foi criada para ser auxiliadora. São textos escritos por homens que refletem a sua época", diz.
Por esse motivo, Lima organiza eventos voltados a mulheres em São Paulo. Em cada encontro, que reúne cerca de 20 a 30 pessoas, há uma discussão sobre a condição da mulher na sociedade brasileira e são distribuídas cartilhas sobre o enfrentamento à violência doméstica, um material didático que ultrapassou os limites da igreja metodista e foi replicado em outras denominações.
"A leitura bíblica que se faz nas igrejas é pensada a partir do patriarcado, dizendo que Deus é homem, fala dos pais da igreja (Abraão, Isaac), e o lugar da mulher está sempre em posição de submissão. Quando pensamos em teologia feminista, fazemos uma releitura dessa história bíblica", afirma ela.
Enquanto Lima distribui cartilhas para coibir a violência contra a mulher, tramita no Congresso um projeto de lei de autoria do Pastor Eurico (PHS-PE), da Assembleia de Deus, revogando a lei (12.845/2013), que obriga os hospitais públicos a prestarem atendimento médico gratuito às vítimas de violência sexual.
A justificativa apresentada pelos defensores do projeto é que o atendimento a vítimas de violência sexual promove o "aborto químico" ao garantir a elas o acesso à chamada pílula do dia seguinte.