Política

O fardo da memória e a força da história: fantasmagorias sobre o golpe de 1964

31 MAR 2019 • POR Eudes Leite • 00h43

-A Efeméride

Mais uma vez nos aproximamos de uma data que por si, pouca relevância tem; mas essa observação perde força quando em torno de 31 de março encontra-se um acontecimento de forte impacto para a história brasileira contemporânea e, sob o impacto das polêmicas criadas pelo atual presidente da República, a memória parece tentar açambarcar a história do golpe de estado de 1964. História e memória não são equivalências enquanto conhecimento, ainda que tenham profundas e indissolúveis relações no estabelecimento de compreensões e explicações de acontecimentos marcantes na trajetória das sociedades humanas. E quando trazemos para o centro da conversa, os acontecimentos impactantes, responsáveis por sinalar a alma de um povo, a discussão de uma efeméride, tal como o 31 de março, impõe cuidados em relação a abordagem e os sentidos que os sujeitos históricos requisitam para apresentar sua memória.

Daí a importância de repor conceitos construídos a partir de pesquisas levadas a cabo, sobretudo por historiadores e historiadoras, mas também por outros e outras pesquisadores e pesquisadoras. Em primeiro lugar, o que ocorreu no Brasil em 31 de março de 1964 foi um golpe de estado, levado à frente por civis e militares, resultado de um período de conspiração que atravessou todo o ano de 1963. A desestabilização do governo, iniciada em 1961 contribuiu para que o presidente João Goulart, o Jango, fosse afastado de forma ilegal do cargo de mandatário-mor do país, mercê de ampla trama envolvendo nacionais e estrangeiros. Não existiu uma “revolução democrática de 1964”: o governo Jango foi interrompido a partir de um ato insólito do general Olympio Mourão Filho, um experiente conspirador, autor do “Plano Cohen”, atribuído à Internacional Comunista e que justificou a implantação do Estado Novo. Em 1964, o general decidira mobilizar tropas, a partir de Minas Gerais, para depor o presidente. Esse episódio-estopim teria pouca chance de ganhar importância se o governador mineiro Magalhães Pinto, outro conspirador, não tivesse oferecido sua anuência. Essas tropas foram observadas por meio de sobrevoos destinados a apresentar informações ao presidente que se decidiu, por fim, não autorizar seu bombardeio; os soldados ficaram assustados com a possibilidade do bombardeio. Em segundo lugar, o golpe civil-militar de 1964 garantiu a instalação de uma ditadura essencialmente militar que durou 21 anos. Não existiu “ditabranda”: o que se seguiu ao longo do regime foi o progressivo cerceamento de liberdades de toda ordem, a suspensão de direitos civis e, a implantação de um perverso e cruel sistema de perseguição, prisão, tortura e extermínio de opositores e opositoras daquele regime de exceção. A cassação de direitos políticos de apoiadores do golpe, como os do ex-presidente JK, anunciou o equívoco cometido por segmentos liberais que apoiaram o avanço sobre a legalidade constitucional. A ditadura foi estruturada à medida em que a rejeição e a reação ao regime cresceu, ganhou forma e parte da esquerda apostou na luta armada, oferecendo argumento para a intensificação da violência de Estado, com apoio de empresários e de agências estadunidenses. Em terceiro lugar, não existiram dois lados: a repressão ocorreu a partir de envolvimento do Estado brasileiro, por meio de vários de seus agentes, de parte do empresariado do país, de agentes estrangeiros, à margem do espectro legal, contra organizações ou pessoas inconformadas com o aprofundamento das arbitrariedades contra toda e qualquer pessoa que manifestasse contrariedade aos atos de um regime autoritário.

-A memória edulcorada

Sabe-se que a eclosão e sucesso do golpe não embutia, como ato subsequente, a implantação de um regime ditatorial, condição que decorreu dentre vários fatores, das fragilidades do governo Castelo Branco. Progressivamente, o governo adotou medidas restritivas, indicando que, contrariamente à expectativa de muitos de seus apoiadores, os militares não estavam dispostos a “devolver” o poder aos civis, decisão que ficou patente com a suspensão do pleito eleitoral para escolha do próximo presidente, em outubro de 1965.

Com o fim da ditadura, subsistiu em alguns setores da sociedade brasileira uma imagem positivada, construída a partir da exaltação do regime, considerando certos períodos como o “milagre econômico”, a irreal inexistência de corrupção e a ocultação da violência. Essas e outras construções edulcoradas a respeito de nossa última ditadura é tributária da imagem equivocada de que vivemos em um país maravilhoso, sem conflitos e de que o golpe mesmo foi indolor. Tal mito, de teor nacionalista e romântico, tem a tarefa de tentar ocultar as profundas contradições de nossa história, funcionando como suposta característica positiva do Brasil.

Não, o golpe de estado de 1964 foi violento em suas dimensões políticas, sociais e simbólicas. As marcas do golpe e da ditadura foram profundas, sobretudo para aqueles homens e mulheres vitimadas pelo autoritarismo e pela violência.

O recurso a afirmações prosaicas, não raras vezes expressando desconhecimento, fruto de memórias dispersas e que enunciam uma inexistente tranquilidade na deposição de Goulart ou durante os 21 anos de Ditadura, não encontram respaldo na pesquisa histórica, pautada pela preocupação com a elucidação de questões centrais em nosso passado. Ainda que os agentes da repressão e o próprio Estado, durante bom tempo tudo fizeram para ocultar e destruir fontes que portam informações a respeito do período, hoje sabemos que esse esforço foi inútil. Historiadores e historiadoras de ofício demonstram sobejamente o fracasso dessa tentativa de soterrar o passado, à exemplo daqueles corpos escondidos em valas comuns, Brasil afora. A quantidade e a diversidade das fontes, bem como a origem de sua produção, apresentam dimensões pouco elogiáveis, seja do Golpe, seja da Ditadura, impondo o desenvolvimento e metodologias sofisticadas para melhor compreender esse material. O acesso a fontes encontradas nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, atestam a influência estrangeira no evento, bem como esclarecem de forma cabal a ausência de limites em relação à decisão de tomada do poder em 1964. O crescimento do interesse sobre o período contribuiu para que a quantidade e a qualidade das pesquisas sobre o Golpe e a Ditadura crescessem, inclusive com a atuação dos brasilianistas (pesquisadores de outras nacionalidades especializados na história brasileira).

Em tempo, parece bom informar que o crescimento e a qualificação da pesquisa histórica em geral e sobre o tema golpe de 1964 e a ditadura permitiu igualmente que tenhamos conhecimento a respeito desses eventos em Mato Grosso, particularmente na área hoje denominada de Mato Grosso do Sul. Pesquisas realizadas por mim, no início dos anos 1990, pela historiadora Suzana Arakaki, entre 2005 e 2015 e, pelo historiador Aguinaldo Rodrigues Gomes, em livro que virá a público neste ano, além de outros autores, tornaram possível conhecer a dinâmica do golpe e da ditadura em nosso estado. Essas pesquisas inserem a história mato-grossense no contexto dos acontecimentos históricos de 1964 e daquilo que se seguiu.

Portanto, o acontecimento histórico “golpe de estado de 1964” e “ditadura militar” permanecem tema de controvérsias, em que a memória quer se fazer história porque até agora o Estado e a sociedade brasileira não enfrentaram de forma consistente um fenômeno histórico que precisa ser continuamente exposto “à luz do sol”, permitindo que a fantasmagoria perca relevância e, quem sabe, a história seja levada a sério.

E, se golpe de estado de 1964 é parte de um conjunto de outros golpes ocorridos na América Latina, sob o contexto da Guerra Fria, o Brasil, diferentemente de Argentina e Chile, não levou adiante um conjunto de ações para impor medidas legais, de caráter punitivo a torturadores e/ou responsáveis por esse ato ilegal e imoral. Uma nação democrática não sobrevive justificando e comemorando a violência, a covardia e o horror.

* O autor é Historiador; professor-titular de história na UFGD