Opinião

A crise da Covid-19 e a renegociação do contrato de trabalho

14 ABR 2020 • POR FRANCISCO DAS C. LIMA FILHO • 17h26

Em 13 de junho de 2012, o sitio CONJUR publicou um artigo de minha autoria intitulado “É possível renegociar o contrato de trabalho”, no qual defendi que em casos excepcionais de crise não prevista ou previsível, que alterasse de forma substancial as condições ajustadas, criando uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações inicialmente ajustadas, é perfeitamente possível alterar, por negociação entre empregado e empregador, preferencialmente com a assistência da entidade sindical representativa da categoria profissional, as condições pactuadas no contrato de trabalho, inclusive quanto ao valor do salário.

De fato, e como ali afirmei, uma vez firmado o contrato, são criadas para as partes o dever de cumpri-lo de acordo com aquilo que foi convencionado — pacta sunt servanda.

Ocorre que, durante a execução, o contrato pode sofrer impactos negativos de fatos e acontecimentos imprevistos na época da celebração, e em certas circunstâncias, impedem o empregador de honrar a obrigação, pode se tornar excessivamente oneroso com sacrifícios desproporcionais para uma das partes ou mesmo impossibilitar que as obrigações sejam cumpridas, inclusive, em certas situações, por ambas as partes, como ocorreu agora com a crise provocada pela Covid-19 que motivou, em muitos Estados e Municípios, a paralisação das atividades produtivas, salvo aquelas consideradas essenciais, e que em alguns deles, voltam a funcionar parcialmente, com muitas restrições, o que tem sido, penso eu, com razão, objeto de muitas críticas, pois o isolamento social tem se mostrado como o mais eficiente instrumento para frear o aumento descontrolado da cominação do vírus.

É claro que isso não implica, que se tenha de descuidar das medidas de proteção dos empresários e da economia. O que não se pode aceitar é que em nome da economia se coloque o direito à vida em segundo plano, por se entender que o vírus não teria a gravidade que a OMS e as autoridades e os especialistas em saúde alertam a todo momento que estaria em declínio como, sem qualquer base cientifica, afirmam aqueles que têm o dever constitucional de defende e proteger a Nação porque assim juraram solenemente.

Para tentar mitigar os efeitos negativos da crise, o Governo Federal editou uma série de Medidas Provisórias, entre as quais se destacam aquelas de nº 927 e a nº 936, que disciplinam a situação dos trabalhadores subordinados nesse momento de pandemia.

Assim, a MP 927 que que foi alterada no dia imediato à edição pela 928 e antecedem a MP 936 provêm, entre outras, as seguintes medidas que vigorarão enquanto durar a pandemia e a situação de calamidade e necessidade públicas: 1) férias que poderão ser antecipadas de forma individual ou coletiva, respeitado sempre o período mínimo de gozo de 5 dias; 2) comunicação no prazo de 48 horas antes do início de gozo; 3) possibilidade de gozo antes de vencido o período aquisitivo priorizando-se o gozo pelos trabalhadores pertencentes ao chamado “grupo de risco”; 4) possibilidade de suspensão do período de férias ou licença dos profissionais de saúde, devendo o retorno ser comunicado preferencialmente com o mínimo de 48 horas antes da data em que voltem ao trabalho; 5) o empregador poderá decidir pelo pagamento do adicional após a concessão e gozo que deve ser honrado até a data de quitação da gratificação natalina no final do ano; 6) não haverá obrigatoriedade de adiantamento da remuneração das férias, podendo ser efetivado até o 5º dia útil do mês subsequente juntamente com o salário; 7) em caso da concessão das férias coletivas, fica dispensada a necessidade de comunicação ao órgão local do Ministério da Economia, mas aqui, e com o devido respeito, penso que o sindicato da categoria deve ser comunicado até mesmo para acompanhar o cumprimento do que determina a norma, pois não se pode ignorar que em face da condição de vulnerabilidade de alguns trabalhadores, agora agravada pela crise, podem ser vítima de algum abuso, especialmente porque muitos deles terão o salário reduzido, o que recomenda um maior cuidado e acompanhamento do sindicato; 8) aproveitamento e antecipação de feriados não religiosos, mas nesse hipótese, o empregador deve comunicar, por escrito, a data de suspensão do trabalho, podendo, todavia, na data do feriado, o trabalhador ser chamado para trabalhar e isso vai depender, em grande medida, da evolução ou não da crise. Como se vê, trata-se de um ato unilateral do empregador, inserido, é bom lembrar, no âmbito do poder de direção empresarial, valendo lembrar que é possível a compensação do feriado com o saldo que o trabalhador eventualmente tenha no banco de horas; 9) Banco de horas, que como lembram Tereza Nahas e Luciano Martinez , a Medida Provisória contém uma grande incoerência, à medida que, o caput do art. 14 exige o acordo individual ou coletivo formal, e no que a compensação poderá ser determinada unilateralmente pelo empregador independentemente de qualquer acordo (individual ou coletivo), ou seja, deixa no intérprete uma terrível duvida que, a meu ver, deve ser resolvida com aplicação do previsto no art. 59, § 5º Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, na redação dada pela Lei 13.467/2017, pois não se acredita que a situação de crise possa ultrapassar a seis meses, pelo menos é que todos desejamos; 9) autorização para flexibilização das condições contratuais, com permissão para que os recolhimentos para o FGTS sejam diferidos, independentemente da natureza do empregador ou do ramo de atividade sem incidência de multas e desde que a contribuição seja relativa ao período em que durar a calamidade pública. Mas aí surge um problema: e se o trabalhador tiver necessidade pessoal a ser suprida? Para isso a possibilidade de efetuar saque além de se encontrar autorizada pela lei 8036/1990 nas hipóteses ali contempladas, foi editada mais uma Medida Provisória 946/2020 autorizando que, fora das hipóteses previstas na citada Lei, pode o trabalhador sacar entre 15 de junho a 31 de dezembro de 2020, até 1.045,00.

Vale lembrar ainda, que foi autorizado, também, o trabalho à distância, especialmente pelo sistema do teletrabalho, mas com normas especificas que apenas durarão enquanto permanecer o estado de calamidade pública em razão da pandemia.

Entretanto, pensamos que o maior impacto das medidas e divergências que surgirão a respeito dessas Medidas, reside naquela de número 936 que prevê a hipótese de suspensão do contrato de trabalho, com redução do salário, mesmo sem participação do sindicato da categoria profissional em determinados casos, especialmente depois de recente liminar expedida pelo Ministro Ricardo Lewandovski, do Excelso Supremo Tribunal Federal, determinando que a redução salarial, mesmo diretamente entre empregado e empregador, deve ser comunicada ao sindicato que tem um prozo para aquiescer, valendo o silêncio como concordância, o que, para alguns, inviabilizaria a aplicação concreta das Medidas o afastamento dos sindicatos das negociações tem potencial de causar sensíveis danos aos empregados e "contraria a própria lógica subjacente ao Direito do Trabalho, que parte da premissa da desigualdade estrutural entre os dois polos da relação laboral". Todavia, em decisão proferida em embargos de declaração, esclareceu que a Medida Provisória continua em plena vigência e que são válidos os acordos firmados com base no que nela previsto, apenas remeteu para o apreciada pelo Plenário da Corte para referendo a questão da constitucionalidade da Medida, pois não suspensa .

À essa altura, parece recomendável lembrar a velha e que agora pensamos que deva ser aplicada, teoria da imprevisão — cláusula rebus sic stantibus.

A cláusula rebus sic stantibus é a mais antiga expressão da possibilidade de revisão dos contratos de execução diferida ou de trato sucessivo, categoria em que o contrato de trabalho se enquadra.

Deve ser considerada implícita nos contratos dessa natureza, não necessitando de menção das partes. Tem, pois, o sentido de que se presume nos contratos comutativos uma cláusula implícita, segundo a qual os contratantes estão adstritos ao cumprimento da obrigação na forma pactuada, no pressuposto de que as circunstâncias do momento de contratação se conservem inalteradas por ocasião da execução da obrigação, ou seja, permaneçam idênticas as que vigoravam quando da celebração.

A teoria da imprevisão tem certas vinculações e semelhanças com o caso fortuito, porém dele difere à medida que como fato extraordinário que não pode ser imputado às partes, torna impossível ou excessivamente oneroso para uma delas cumprir a prestação.

Difere a teoria da imprevisão do caso fortuito, pois este traz consigo uma impossibilidade absoluta de execução das obrigações, ao passo que naquela essa impossibilidade é relativa ou temporária, pois o devedor pode cumprir a obrigação embora para isso tenha de fazer um sacrifício econômico desproporcional.

Enquanto no caso fortuito o devedor se exime da responsabilidade, a imprevisão não leva necessariamente a extinção da obrigação, se não em certos casos. Por meio dela, apenas se modificam os contratos.

Ademais, a noção de caso fortuito é de caráter objetivo, o que não ocorre na imprevisão que é uma noção de caráter mais subjetivo.

Desse modo, trata-se a imprevisão de circunstâncias surgidas posteriores à celebração do contrato, que não se previam nem poderiam logicamente prever-se quando da celebração e que podem criar um estado de coisas que torne o cumprimento contratual um sacrifício pecuniariamente desproporcional ou gravemente prejudicial para o devedor, o que, com todo respeito, ocorre no momento atual de crise de uma pandemia que paralisou temporariamente, se não total, a grande maioria das empresas produtivas do País, só que com característica especial: não foi o empresário quem resolveu, face à situação, suspender ou paralisar suas atividades, porquanto ordenada pelo Poder Público, como forma de permitir o isolamento social, em nome do interesse público, como forma de evitar a contaminação descontrolada das pessoas pelo coronavírus.

Mesmo assim, a suspensão do contrato de trabalho com a redução salarial não é obrigatória; antes, se encontra no âmbito do exercício do poder de direção do empresário ou empregador, mas autorizado por expressa disposição legal, o que impossibilita, pelo menos em tese, a invocação do chamado fato do príncipe, previsto no art. 486 da Lei Consolidada como, aliás, tem se manifestado a doutrina.

De fato, o caráter excepcional da pandemia e a natureza coletiva das restrições de circulação da população, com a supremacia do direito à vida, bem mais importante do ser humano, previsto no caput do art. 5º da Carta Maior, parece não autorizar a aplicação do contido no art. 486 da CLT, que exige, além da natureza excepcional do ato de autoridade, relação direta com o encerramento da atividade não em caráter facultativo, mas obrigatório. Todavia, no caso de suspensão parcial como dos restaurantes e outros, que continuam atendendo pelo sistema delivery, e ainda assim, em caráter provisório e apenas enquanto durar as medidas de isolamento social, com o devido respeito, parece afastar a incidência do previsto no art. 486 da Lei Consolidada, máxime porque o próprio Governo editou uma série de medidas para socorrer os empresários que tiveram de suspender temporariamente suas atividades, inclusive como diferimento de recolhimento de FGTS, contribuição previdenciária e outros tributos além de linhas de crédito para aqueles se enquadrem em determinadas situações.

Assim entendido, podem as partes crendo-se afetadas pela contingência da crise da pandemia, induvidosamente extraordinária e imprevista ou imprevisível, capaz de levar ao rompimento do contrato de trabalho e, portanto, à perda do emprego pelo trabalhador, renegociarem o contratado de trabalho com redução de jornada e do salário, de forma a adequá-lo ou reequilibrá-lo à nova realidade advinda da mudança não prevista quando da celebração, mas dentro de certas balizas e a mais importante diz respeito à possibilidade de redução salarial, sem a participação do sindicato da categoria em determinados limites, o que para alguns viola o previsto no art. 7º, inciso VI da Carta de 1988, estabelecendo e garantindo “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”, que pressupõe a participação do sindicato nas negociações (inciso VI do art. 8º).

Em que pese esses entendimentos, pensamos que se está ante à uma situação de emergência, de pandemia, de calamidade pública, o que, pelo menos em princípio, parece razoável entender que não se deve exigir, em caráter obrigatório, a participação do sindicato na negociação de parcial e provisória suspensão/alteração do contrato, embora seja sempre bem-vinda, até mesmo porque a Medida Provisória prevê as balizas em que a suspensão/alteração pode ser levada a efeito, o que recomenda seja acompanhada pela entidade sindical para se evitar algum abuso.

Nesse sentido, vale trazer à colação o entendimento de Tereza C. Narras e Luciano Martinez , do qual compartilho, nos seguintes termos:

A pergunta que ficou no ar é se, efetivamente, é possível, ou não, suspender o contrato de trabalho por acordo individual e com redução salarial de até 25% como prevê o art. 503, CLT. É certo que a regra Constitucional prevê

a necessidade de negociação coletiva para redução de jornada e salário. Todavia, não parece existir qualquer incompatibilidade entre a regra estabelecida no diploma consolidado e a necessidade de medidas extraordinárias

adotadas justamente para a realização dos fundamentos da Carta Constitucional, relativo aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Não estamos diante de uma situação de tensão entre o direito do trabalho e

a liberalidade empresarial, mas sim diante de um tema extraordinário, vinculado à saúde pública, que necessita de soluções extraordinárias. A pandemia da COVID-19 é uma questão de Estado e não de mercado, ao contrário

do que ocorreu na crise de 2008 das subprimes. Refere-se a saúde pública e afeta a todos indistintamente. Não houve previsão pelo legislador Constitucional quando instituiu o extenso rol das regras de proteção aos direitos sociais

entre eles, o trabalho. Aos trabalhadores a CF/88 previu a proteção à relação de emprego, bem como garantiu outras liberdades, entre elas a econômica, todas essenciais a manutenção da dignidade humana. A solidariedade e

a boa-fé devem ser levadas em conta na interpretação das adaptações dos negócios jurídicos, intencionalmente dirigidos a finalidade de recobrar a normalidade da situação. Não se pode ter outra interpretação que não a de

permitir, exatamente nos termos do instituto da força maior, a redução salarial de até 25%, por acordo individual, observando que o trabalhador não poderá receber, em hipótese alguma remuneração inferior ao valor do salário mínimo federal.

Tal se dá unicamente até que se cesse a situação decorrente do acontecimento inevitável e para o qual a vontade do empregador não contribuiu. Não considero que o Capítulo VIII da Lei Trabalhista seja incompatível com a CF/88,

ao contrário, foi por ela recepcionado. As negociações coletivas reclamam um procedimento próprio nem sempre compatível com a urgência que se exige de decisões que necessariamente devem ser tomadas em situações

extraordinárias, como as que estão sendo vivenciadas. Desde a reforma trabalhista de 2017 os sindicatos perderam o protagonismo que idealmente deveriam ter, havendo várias discussões em curso sobre a

representatividade e liberdade sindical, dificultando ainda mais as negociações sem burocracia a nível coletivo. 

A situação deveria reclamar uma ação eficiente dos sindicatos, cuja ausência é absolutamente percebida neste momento histórico.

De fato, estamos num momento tragicamente histórico de pandemia, de contaminação por um vírus muito perigoso que matou milhares de pessoas ao redor do mundo, muitos aqui no Brasil, que levou as autoridades governamentais a determinar o isolamento social com o fechamento ou paralisação temporária e parcial de grande parte das atividades produtivas, o que termina impedindo as empresas e empreendedores de pagar salário, pelo menos nos termos convencionados ou costumeiramente pagos, embora ao mesmo tempo, tenham sido adotadas medidas de socorro aos empresários de modo que se evite o fechamento definitivo de muitas empresas, especialmente as pequenas que, diga-se de passagens, são as que empregam, e com isso prevenindo contra a demissão de seus empregados. Por conseguinte, trata-se de uma situação absolutamente imprevista e de emergência que necessita de medidas igualmente excepcionais para se tentar minimizar os efeitos negativos da crise.

Nesse concreto e provisório quadro, a exigência da participação obrigatória do sindicato da categoria na negociação de suspensão/alteração provisória do contato de trabalho com a redução do salário dentro de certas balizas que a própria Medida Provisória estabelece, não parece se justificar, pois complemente proporcional, à medida que, como lembram os autores antes citados, demanda tempo, demoradas negociações e procedimento especial que poderá inviabilizar a própria negociação, terminando, na prática, prejudicando o trabalhador que poderá vir a perder o emprego e, portanto, o meio de sobrevivência numa época de extremas dificuldades, embora a orientação e o acompanhamento facultativo da entidade devam ser estimulados.

Desse modo, para enfrentar a crise todos devem dar o seu contributo, não se podendo pensar apenas o trabalhador, pois o empregador também foi afetado gravemente pela crise e, portanto, merece igualmente proteção. Afinal, sem empresas funcionando com condições de pagar salário, certamente faltará pão na mesa do trabalhador.

É esse o nosso modesto entendimento sem, todavia, ter a pretensão de sermos definitivos ou absolutos, mas apenas contribuir para um debate que se faz necessário a respeito do tema. Afinal, em Direito, sempre existe mais de uma opinião a respeito de toda e qualquer questão jurídica.

É essa nossa visão como contribuição para discussão do tema.

* O autor é desembargador do TRT24 (Tribunal Regional do trabalho da 24ª.Região), em Mato Grosso do Sul