Quando deixou a quadra do ginásio de Palmi no último domingo, Tifanny Abreu sorriu aliviada. Era sua estreia pelo Golem Volley, time da pequena cidade italiana, pela segunda divisão do campeonato nacional. A oposta fez 28 pontos, foi eleita a melhor da partida e levou seu time à vitória contra o Delta Trentino. O jogo, porém, marcou também um fato histórico: Tifanny é a primeira transexual brasileira a conseguir autorização da Federação Internacional de Vôlei (FIVB) para jogar entre as mulheres.
A jogadora prefere não falar sobre o passado. Pede, inclusive, que não se publique seu nome de registro masculino. “Isso me faz mal”, explica. Aos 32 anos, porém, lembra com orgulho dos passos que a levaram à Itália. No Brasil, chegou a jogar a Superliga B masculina, por Juiz de Fora e Foz do Iguaçu. Foi para a Europa, onde começou seu processo de transformação. Já como transexual, chegou a jogar entre os homens, na Holanda e na Bélgica. Quando finalmente terminou o tratamento hormonal, deu entrada para a mudança de documentação. A burocracia atrapalhou, mas a espera chegou ao fim no domingo.
- Foi muito tempo esperando. Depois que tudo deu certo, me transferi para a Itália para jogar na Liga 2. Foi muito difícil para mim. Eu estava muito nervosa. Sou muito tímida. Foi uma pressão grande sobre mim, as meninas precisavam de mim. A equipe é muito boa, mas precisa de uma pitada de energia. E foi minha energia que fez todo mundo jogar bem. O ginásio estava lotado, foi muito lindo.
O público me abraçou, me fez me sentir em casa. As meninas me trataram como uma irmã. E foi muito bom para mim. Dei meu melhor, vencemos por 3 a 1 e depois pude dormir tranquila - afirmou.
Ao deixar a quadra após a vitória, Tifanny foi aplaudida pelo ginásio inteiro. No dia seguinte, recebeu flores e uma mensagem de parabéns de Mauro Fabris, presidente da Liga Italiana. Nas redes sociais, no entanto, viu que sua presença em quadra ainda não é bem vista por todos. Apesar do apoio da cidade e do clube, a brasileira sabe que terá de vencer preconceitos para dar sequência à sua história no vôlei.
- As pessoas falam muito. Chegaram até a dizer que eu quebrei o dedo de uma menina no treino, sendo que eu nem estava no treino quando isso aconteceu. São boatos. Ficam perguntando se eu posso jogar, se eu tenho mais força ou vantagem. Eu não tenho vantagem nenhuma. Eu simplesmente sou uma jogadora boa. Eu tenho a força de uma jogadora boa, de uma mulher boa. Nível de seleção. Simplesmente isso. Eu estou dentro da lei. O meu nível de testosterona está baixíssimo. Eu fiz toda a minha transformação, não há nada de errado. Se eu fosse ruim, ninguém comentaria – disse a jogadora.
A transição para assumir o corpo de mulher não foi fácil. Quando ainda jogava na Holanda, Tifanny começou seu tratamento hormonal. Após alguns meses, viu sua força de ataque praticamente sumir. Mudou seu estilo de jogo, buscou golpes mais técnicos e se manteve em quadra. Foi quando seu empresário mostrou que o sonho de jogar entre as mulheres era possível, ainda que o caminho fosse longo.
- A minha transição iniciou em 2013. Eu não sabia que podia jogar no feminino. Eu era totalmente desinformada, como muita gente que comenta também é. O meu empresário descobriu que eu podia jogar no feminino. Eu falei que não era possível. Ele me disse: “Quando você terminar toda a sua transformação, precisa trocar toda a sua documentação.
Você automaticamente passa a ser mulher e vai estar apta a jogar no feminino”. Eu, sabendo que estava no processo, pensei: por que não tentar? O mais difícil é a reposição hormonal, mexe muito com a gente. Tira muito da força, cai a 60%. Agora, somente ataco como uma mulher. Não tenho aquela força. Sou uma jogadora de 1,90m, com talento, velocidade e tento fazer o que o técnico pede.
Quando ainda jogava entre os homens, Tifanny sentiu a mudança. Foi alvo, inclusive, de questionamentos dentro do clube. Ali, os hormônios já aceleravam o processo de transformação.
- Quando comecei o tratamento hormonal, foi do final de uma liga para a outra. Estava muito bem. Ainda tinha aquela força estrondosa (risos). Quando voltei, já tinha seis meses de tratamento, então já estava com o nível de testosterona muito baixo. Todo mundo se assustou quando viu. Começaram a perguntar, disseram que eu estava atacando muito fraco, não estava saltando. Eu dei a desculpa de que eram as férias, que eu tinha comido muito. Mas, na verdade, eram os hormônios que estavam agindo, transformando tudo.
Quando o tratamento hormonal chegou ao fim, o empresário de Tifanny já tinha entrado em contato com clubes femininos da Europa. Logo, a jogadora recebeu uma série de propostas, inclusive a do Golem. Ao saber que o clube estava contratando uma transexual, nem todos, porém, aceitaram.
- Saíram muitas matérias com fotos minhas de antes, de quando eu estava começando a tomar meus hormônios. E por isso tiram que eu sou aquela. Não, eu sou a Tifanny. Tive quatro anos de tratamento hormonal, estou apta a jogar no feminino. Para jogar no masculino, naquela época, foi muito difícil. Era muito difícil ver uma mulher no meio de homens, jogando campeonatos importantes. As pessoas me viam e diziam que eu não podia jogar com os homens. Agora, com as mulheres. Qual o problema?
Tifanny, porém, não é a primeira transexual a atuar na Itália. Antes, Alessia Ameri já havia disputado a competição nacional. A jogadora, que começou a carreira como líbero, ainda atua no vôlei italiano, mas sem o mesmo destaque.
- Com ela teve problema porque foi a primeira. Agora, comigo, é porque sou atacante forte. Se eu não fosse boa, seria apenas mais uma jogadora trans.
Entre as companheiras, Tifanny diz não ter tido problemas. Pelo contrário. Assim como a população da cidade, a jogadora afirma ter sido bem recebida, como qualquer outra mulher que chegasse à equipe. Nesta segunda-feira, após as críticas à amiga nas redes sociais, a capitã do time, Francesca Moretti, fez um relato emocionado em defesa. Por isso, a brasileira afirma estar feliz.
- Assim que vim para a Itália, fui recebida com muito carinho, muito amor. A cidade toda. As meninas me tratam como se fossemos irmãs. Não tenho nada de diferente. Elas me tratam apenas como uma jogadora, e não como uma jogadora trans que veio. A única coisa que eu tenho de especial é que eu vou ajudá-las. Estamos sempre juntas, que é o que é importante. Tive uma recepção maravilhosa.
Agora, Tifanny quer mais. Sonha com um lugar em um time mais forte, em alguma competição de ponta. Quem sabe, inclusive, voltar ao Brasil para disputar a Superliga.
- O meu futuro, eu deixo nas mãos de Deus. O que for melhor. Eu pretendo subir para equipes mais fortes, torneios mais fortes. Não sei onde vou jogar, se no Brasil, Europa, Ásia. Estou de braços abertos para tudo que vier de bom.