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Francisco das C. Lima Filho

19 de Abril: Dia do Índio e as aldeias de Dourados continuam sem água

15 abril 2025 - 14h05Por Francisco das C. Lima Filho

Em outra oportunidade, em artigo publicado no jornal Correio MS, sob o título “19 de abril: Dia do Índio. Quase nada a comemorar”, no qual chamei atenção para o incumprimento das “reiteradas promessas feitas pelo constituinte de 1988” quanto aos direitos dos povos indígenas, afirmei que, passados mais de vinte anos da promulgação da “Constituição cidadã” – nas palavres e na esperança de Ulysses Guimarães - praticamente continuavam sendo, ao que parece propositadamente, esquecidas pelo Governo. E a principal, porque dela depende a afirmação concreta da cidadania e própria sobrevivência desses povos: a demarcação de suas terras.

Passados mais de três anos, felizmente se começa a ver iniciado essa promessa que na verdade é um dever do Estado, pelo menos neste Estado de Mato Grosso do Sul, por iniciativa do Supremo Tribunal Federal, mais especificamente, pelo esforço do Ministro Gilmar Mendes, que esperamos tenha continuidade e torne realidade a promessa do constituinte de 1988.

Entretanto, vários outros direitos desses povos ainda permanecem incumpridos, como o reconhecimento, no campo da realidade, da igualdade de direitos com os demais cidadãos da comunhão nacional e a não discriminação, como previsto no art. 231 da Carta da República e nas normas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Assisti, estarrecido, há cerca de dois meses, pela televisão, os atos de excesso se não de violência, inclusive contra mulheres, pela Polícia Militar contra os indígenas das aldeias Jaguapiru e Bororó, situadas nas imediações da cidade de Dourados – Mato Grosso do Sul, que, talvez como última alternativa para chamar a atenção das autoridades competentes, mais uma vez, depois de anos sem terem acesso à água, bem essencial à própria vida, bloquearam uma rodovia que dá acesso àquela cidade, o que além de lamentável jamais poderia ter ocorrido, pois se é certo que a Constituição garante a todos o direito de livremente se expressar e se locomover, também não é menos verdadeiro que, antes disso, tutela o direito à vida (art. 5º da Carta de 1988), sem o qual nenhum outro direito garantido terá sentido ou utilidade, e para tanto, o ser humano depende de água para beber e satisfazer outras necessidades vitais, pois como lembra David Companaw, sem água não há o que beber nem o que comer.

Desse modo, o Estado que deve, antes de todos, não apenas garantir, mas, sobretudo, implementar e respeitar os direitos fundamentais dos povos indígenas (art. 231 do Texto Maior), não pode ele próprio, ser fator de agressão a esses direitos, entre os quais, se inclui o direito fundamental à água[1] e à terra para que nela possam sobreviver dignamente e preservar seus valores culturais, evidentemente[2].

De fato, o Direito Humano de acesso à água potável e ao saneamento básico é um direito humano essencial, fundamental e universal, indispensável à vida com dignidade, reconhecido pela Organização das Nações Unidas - ONU como “condição para o gozo pleno da vida e dos demais direitos humanos” (Resolução 64/A/RES/64/292, de 28.07.2010). 

Desse modo, se pode afirmar que o acesso à água e ao saneamento integra o conteúdo mínimo essencial do direito à dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, a água há de ser potável e em quantidade e qualidade suficientes para a sobrevivência digna do ser humano, e em caso de escassez, a prioridade do acesso deve ser a pessoa humana. Enfim, se deve garantir o que se denomina de “dignidade hídrica” (D´ISEP, 2010, p. 59), à medida que sem o acesso a uma quantidade mínima de água potável, os outros direitos a ela intrínsecos, tais como o próprio direito à vida e e a um nível adequado para a saúde e bem-estar, se tornam inatingíveis.

Entretanto, a disponibilidade de água atualmente atravessa uma grande crise de escassez, agravada pela chamada crise hídrica ou climática que não se pode desconhecer.

De acordo com os estudos da World Health Organization e Unicef, 769 milhões de indivíduos são afetados por escassez ou falta de acesso à água no globo. Entre esse número, apenas na África existem mais de  300 milhões de pessoas que não têm acesso à água potável (“Progress on Sanitation and Drinking-Water: 2014 update”, 2014), o que inclusive, constitui uma das causas das migrações internas e internacionais, levando milhões de pessoas a migrarem para outras regiões ou países a procura de água e condições de sobrevivência, como tive oportunidade de chamar a atenção em artigo doutrinário sobre o tema[3], quando afirmei:

(...) a disponibilidade de água atualmente atravessa uma grande crise de escassez. Segundo os estudos da World Health Organization e Unicef, 769 milhões de indivíduos são afetados por escassez ou falta de acesso à água no globo. Dentre esse número, só na África há 358 milhões de pessoas que não tem acesso à água potável (“Progress on Sanitation and Drinking-Water: 2014 update”, 2014). Deveras, a concentração de atividades humanas nas regiões metropolitanas, associada à incapacidade de governança, apontam para cenários de riscos ambientais urbanos e rurais que comprometem a disponibilidade hídrica à população. Num contexto global, essa degradação compromete o nosso objetivo de assegurar à atual e futuras gerações o necessário “acesso à água de forma suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e oferecida para as necessidades humanas vitais” (Conferência de Berlim, 2004, art. 17).

Tudo, não obstante, e sem desconhecer essa realidade que atingiu fortemente o Brasil no ano de 2024, o caso da falta de água nas aldeias de Dourados não se deve à crise climática, mas a omissão do Estado, responsável pela proteção dos povos indígenas, em manifesta violação ao garantido pelo art. 231 da Constituição de 1988, que ao longo de anos, descurou e continua descumprindo esse dever fundamental, não cuidando de dotar aquelas aldeias de condições mínimas para que possam ter acesso a esse bem vital, deixando-as à própria sorte e que vêm, anos após anos, reclamando contra esse descaso, o que constitui evidente violação ao direito à própria vida dessa população, cujo proteção além de se encontrar prevista no art. 5º do Texto Maior, é um dever fundamental do Estado, que sistematicamente vem sendo descumprido.

Parece evidente, por outro lado, que a solução provisória ansiada e não cumprida, de distribuição racionada de água por caminhão pipa não resolve o grave problema daquelas aldeias, que têm uma população próxima de vinte mil habitantes e, que, à evidência, não será suprida com meros caminhões pipas ou um poço coletivo, mas com um programa efetivo de canalização e distribuição de água pela concessionária responsável pelo abastecimento de Dourados e Região, pois como todos os demais cidadãos da comunhão nacional, os indígenas têm o fundamental direito de acesso à água potável, não se justificando a omissão do Estado em satisfazer essa necessidade vital desses povos, à medida que a Carta de 1988 prevê e garante, antes de todo e qualquer outro direito, o direito à vida digna (art. 5º), se deve entender que o direito à água, bem essencial à própria sobrevivência do ser humano, constitui uma dimensão do conteúdo essencial desse fundamental direito.

No âmbito internacional, embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1949) não faça referência expressa ao direito humano à água, referido direito se encontra previsto no Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, do qual o Brasil é signatário e que o incorporou à ordem jurídica interna, e assim tem natureza vinculativa por força do previsto no Decreto 592, de 6 de julho de 1992, cujo art. 11.1 garante: 

o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida.

Parece evidente, que um nível de vida adequado e digno para a própria pessoa e sua família, além de alimentação vestimenta e moradia, pressupõe o direito fundamental à água, pois sem este simplesmente a vida perece.

Nesse quadro, tornou-se urgente a solução do problema do acesso à água pelos indígenas das aldeias de Dourados, o que, com toda certeza, demanda uma imediata política pública de  meios para que o precioso bem seja levado para aqueles espaços, com os mesmos instrumentos que são garantidos e utilizados aos demais cidadãos da comunhão nacional e não por mero caminhão pipa ou poço coletivo, que apenas se justifica, de forma provisória e enquanto o pleno acesso não for possível, sob pena de se violar, como, aliás, se vem violando ao longo de anos - vale repetir - o que previsto no art. 231 da Carta da República e as normas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT (arts. 2º e 3º), discriminando essas pessoas pela sua condição de indígenas, o que não se pode conceber nem aceitar.

Com a palavra o Governo.

* É Mestre e doutor em Direito Social na Universidad Catalla-la Mancha-UCLM – ESPANHA e Desembargador do TRT24 (Tribunal Regional do Trabalho da 24a. Região) em Mato Grosso do Sul

[1] De acordo com o Artigo 1 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas:  “Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos”

[2] Nos termos do previsto no art. 231 da Carta de 1988:  “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

[3] LIMA FILHO, Francisco das C. Os impactos negativos da crise climática e dos incêndios na economia, nas relações de trabalho e no nível de emprego. In:Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS | v. 26 | n. 52 | Jul./dez. 2024, p. 16-24.