Ronaldo aposentou-se. Apresentou ao público suas razões, em anúncio transmitido pela tevê: “Perdi para o meu corpo”. Mas não havia apenas lamento, desculpas e agradecimentos no discurso do maior artilheiro das copas do mundo. Ele falou de planos.
Embora se possa julgar que o ex-craque aos 34, condição financeira absurdamente favorecida etc. não serve de parâmetro, é possível encontrar no episódio similaridades com casos de, digamos, mortais comuns. De alguma maneira, ou de várias maneiras, Ronaldo preparou-se para a aposentadoria. Para os tempos em que deixaria de ouvir milhares a lhe saudarem nos estádios.
Ele não pretende usar o (novo) tempo disponível somente para levar os filhos ao colégio bilíngüe ou passear de barco por Angra. No pronunciamento, citou uma série de negócios a que pretende estarem ligado no futuro imediato e além.
É o que diz Ronaldo. E é o que se recomenda que se faça – uma preparação. Não só para gente de “menos idade”, “privilegiada”, como ele: a organização prévia é importante para todos. Uma tese de doutorado defendida recentemente na Faculdade de Medicina da USP trata do tema. Em “Fatores de risco à senilidade na transição à aposentadoria”, o psicólogo Juan Canizares estuda efeitos psíquicos, sociais do desligamento do emprego.
Orientador do trabalho, o médico Wilson Jacob Filho, professor da faculdade e diretor do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas, observa que essa aposentadoria ativa necessita ser planejada. “O indivíduo deve, desde sempre, imaginar o que gostaria de fazer quando não estiver mais trabalhando. E, de preferência, ter respostas plurais: para ganhar algum dinheiro seria isso, para ter prazer seria aquilo... Ele deve, enfim, estar ciente que um dia irá se aposentar.”
Modelo antigo
Nosso modelo de aposentadoria foi estabelecido há meio século, época em que se acreditava que iríamos trabalhar por muito tempo (até por volta dos 60) e ficar aposentados por pouco tempo (uma década, mais ou menos). Pois o processo evolutivo, no que têm parte os avanços da ciência, se encarregou de tornar obsoleto esse desenho. “Hoje, uma pessoa de 60 anos tem plenas condições de começar alguma coisa, enquanto no passado ela estava em franca decadência”, avalia Jacob Filho.
Prestes a se aposentar, a professora Elaine Maria Curvelo Matos Tavoralo, de São Paulo (SP), é exemplo da modificação de conceitos. “A vida inteira lutei pela independência da mulher e agora vou ser dona de casa? Eu me perguntava: ‘Será que vou entrar em depressão, ter neurose? ’. Essa é minha angústia”, conta. Para aplacar o sentimento, começou a fazer cursos, já em 2010, antes mesmo de parar de trabalhar. Deseja, inclusive, envolver-se em atividades remuneradas, “testar opções, começar outra fase da vida”.
Não é férias
Erra quem acredita que a temporada pós-trabalho é constituída de uma liberdade que só traz benefícios, conforto. Há o lado positivo, naturalmente. Mas quem trabalhou a vida inteira pode imaginar que deixará de ser produtivo, de verter recursos para a família, para a sociedade. “E, às vezes, é o contrário, essa pessoa mantém a família com o dinheiro da aposentadoria”, pondera a gerontóloga Cláudia Ajzen, professora de psicologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “Tudo depende de como ela se aposentou em termos financeiros. Infelizmente, o dinheiro vai reger grande parte desse sossego.”
Neste mês de março, faz um ano que Ademir de Lima, 55, de São Paulo (SP), se aposentou. Era gerente de banco e acha que estava mesmo na hora de parar: “A profissão é altamente estressante. Agora, posso curtir um pouco a vida, minha mulher adora viajar”. Ele não deixa de notar, contudo, que “de vez em quando você fica meio estressado”. No seu caso, o ex-gerente passou a trabalhar com construção civil. “Pensei nisso antes de sair do banco. Lógico que é para ganhar um pouco de dinheiro, mas o principal é ter algo para me ocupar. Se você ficar em casa vendo televisão direto, você fica louco.”
Atividades adequadas
É consenso que a noção antiga que se tinha do aposentado – o sujeito em pijamas, vivendo repouso permanente – perdeu sentido. A medicina, sobretudo a preventiva, auxilia na manutenção do envelhecimento saudável. Houve também mudanças econômicas, sociais.
Vilma Fernandes começou a trabalhar como educadora em saúde pública nos anos 1950. Foi funcionária da secretaria de saúde do estado de São Paulo por décadas e se retirou há pouco mais de dez anos. Desde então, viaja com mais freqüência, tem mais tempo para familiares. “E sou voluntária em oito instituições. Para mim, é importante ajudar.”
“As pessoas têm um valor de participação na comunidade, o que tem de ser estimulado sempre”, considera Marisa Aciolly, professora de gerontologia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. “Aos que desejam continuar trabalhando, há empresas que oferecem serviços para idosos, com jornada inferior a oito horas por dia.”
Medo e depressão
Redução de dinheiro, prejuízo social, problemas de autoestima são essas as contingências mais comuns enfrentadas por aposentados. Vivemos mais, e vivemos um tempo que dá extremo valor àquilo que é associado a comportamentos, e capacidades, dos jovens.
Jacob Filho ressalta que, na tese do psicólogo Juan Canizares, foram percebidos dois tipos de “medos” ligados à aposentadoria. O primeiro, mais usual, a perda de status: caem salários, bonificações. O segundo, a perda de prestígio: vale, principalmente, para posições de destaque, e Ronaldo e o ex-presidente Lula são exemplos notórios.
Se não é planejada, a aposentadoria pode ter implicações de ordem física e mental. Física porque a pessoa diminui o ritmo, move-se menos. Mental porque em geral a atividade cerebral diminui. “A repercussão é a piora da capacidade de raciocínio, cognitiva. O indivíduo passa, simultaneamente, por uma perda de autoestima, que pode ser a base para um estado de depressão.”
O estabelecimento de um plano permite a superação desse período de transição complicado. Que faz até Ronaldo, um célebre crítico da prática da concentração, admitir que sentirá falta do encarceramento involuntário dos jogadores às vésperas das partidas.