Menu
Buscarsexta, 26 de abril de 2024
(67) 99913-8196
Dourados
34°C
cmd participa
Educação

Sem educação de gênero nas escolas, a sociedade vai retroceder, afirma coordenadora do Nudem

25 julho 2016 - 12h26

A violência contra a mulher em suas várias modalidades, dentre elas o machismo e a cultura do estupro, são formas qualificadas de opressão de gênero extremamente presentes na sociedade brasileira. Neste contexto, os casos de estupro coletivo ocorridos no Brasil nos últimos meses foram uma espécie de ignição para que a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, por meio do Nudem (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher), propusesse uma discussão sobre a desconstrução da cultura do estupro, ocorrida na última semana. Após a audiência, a coordenadora do Nudem, Edmeiry Silara Broch Festi, concedeu entrevista ao Jornal Midiamax de Campo Grande, na qual comentou sobre mecanismos institucionais de combate ao machismo e à cultura do estupro e também destacou a importância do debate sobre opressões como meio de transformação social. Confira.


Sabemos que estamos numa sociedade basicamente machista e, de vários ângulos, misógina. A senhora consegue explicar porque a cultura do estupro ainda é tão arraigada na nossa sociedade, mesmo com esse crescimento de mulheres empoderadas, mais conscientes da opressão que sofrem?

Acredito que apesar de estarmos discutindo a questão da cultura do estupro e do machismo, ainda falta muita discussão, muito debate. Falta, também, entrarmos dentro de outras instituições nas quais esta realidade é velada, falta iniciar essa discussão por lá, para depois abrir as portas e buscar o público de fora. Falta discussão dentro das igrejas, no âmbito das religiões, porque a mulher, ali, é colocada numa situação inferior e isso faz com que essa cultura se replique. Há necessidade de mais discussão em todos os espaços e isso explica muito porque a cultura machista e, consequentemente, a do estupro continuam tendo vez, mesmo com esse crescente empoderamento feminino.

Como o debate age nessa transformação social?

É a sensibilização por meio da informação, para que os homens coloquem-se no lugar das mulheres, principalmente daquelas que são vítimas dos crimes mais violentos, e chamar a responsabilidade dessas pessoas, indagar se é isso que se quer para a sociedade, para a sua filha, para sua irmã, mãe... Se a gente chamar a responsabilidade de cada um, vamos começar a mudar. É como afirmei, faltam as pessoas pensarem sobre o assunto, que é ainda tão difícil de ser enfrentado, que as pessoas evitam.

Eventos como o de hoje, então, contribuem muito para a mudança deste quadro, mas estamos falando de um núcleo já direcionado a discutir as vulnerabilidades da mulher, que é o Nudem. Mas e as outras instituições, outras divisões, seções, enfim, como deveria acontecer esse debate nelas?

Eu não vou negar que mesmo dentro da instituição nós temos essa problemática. É algo que posso te falar enquanto Defensoria: para a mulher entrar, ela pode estudar e passar no concurso e acreditar que, a partir desse momento, não existem diferenças sexistas. Mas, é justamente a partir daí que surge a problemática, porque a imposição masculina ainda é muito forte. Por isso que falo que essa reflexão precisa ser interna, para depois sair. A Defensoria tem feito esse trabalho. O Nudem, como você falou, é a criação de um órgão dentro da Defensoria justamente porque já se viu essa necessidade, tanto de se discutir internamente o machismo e depois disso levar o debate para fora, já com a mudança dessa cultura. É algo muito difícil, mesmo.

Um dos debates levantados, sobretudo nas redes sociais, é que a mulher nunca é culpada da opressão que sofre, e que nunca se pode duvidar da denúncia das vítimas. Entretanto, nas delegacias, há poucas pessoas realmente qualificadas para atender esses casos com sensibilidade. Claro, existem as Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), mas, essa qualificação não deveria ser universalizada?

De fato, a preparação das pessoas de forma geral para lidar com a mulher em vulnerabilidade é muito necessária. Veja que hoje, além da representação do governo do Estado, que estava no evento, nós convidamos a Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública). O secretário afirmou que não poderia comparecer, mas que enviaria representante. Nós tivemos uma delegada presente, representando a Deam da capital, apenas. Não houve uma representação a nível estadual. Conto isso para você ver como há a dificuldade de trazer esses representantes, imagine, então, de falar com eles, de tratar esses assuntos. Eu acredito que não está havendo esta capacitação, cuja necessidade hoje foi tão falada. E ela precisa estar em todos os lugares: na Defensoria Pública, no Ministério Público, na Magistratura... Porque a vítima de estupro muitas vezes é colocada para dar seu depoimento na frente do agressor. Isso não ocorre aqui nas especializadas porque eu conheço o trabalho realizado lá. Mas eu tenho 13 anos de Defensoria e nas minhas andanças pelo interior já presenciei abusos várias vezes. Quer dizer, essa capacitação não é só nas Deam, é geral: desde a saúde, passando por todos os órgãos em que a mulher possa ter necessidade de atendimento.

A senhora acha que a repercussão do estupro coletivo que aconteceu no Rio de Janeiro despertou ou ajudou a despertar uma consciência nas pessoas em relação à cultura do estupro?

Com certeza. A partir do momento em que você coloca o tema para discussão, as pessoas pensam sobre. E dentro da Defensoria Pública, tanto dentro do Conselho como do Conselho Nacional dos Defensores Públicos, o tema é levado. De cima, vai sendo distribuído a todas as  defensorias. É um efeito cascata positivo.

Na última semana, recebemos a notícia de que a atriz Luiza Brunet, que é de Mato Grosso do Sul, foi agredida pelo ex-namorado e teve quatro costelas quebradas. A violência contra a mulher, portanto, não escolhe a vítima, pode acontecer com qualquer uma, mas temos visto mais mulheres de estratos sociais mais altos denunciando. Por quê?

Como você disse, a violência contra a mulher nunca escolheu vítima. Eu acredito que está, sim havendo uma mudança no comportamento das pessoas enquanto sociedade, já que as mulheres tinham muito mais medo de se expor. Tanto que, atualmente, a gente vê que a quantidade de processos de violência doméstica muito maior nos estratos sociais mais altos. Antes disso, essa violência era mais velada e era resolvida de outra forma. A mulher contratava um advogado particular e se resolvia ali, sem levar para a área criminal. Já a mulher pobre, no entanto, não tem como contratar um advogado. Ela vai para a delegacia e vira estatística. Eu acredito que a mudança de cultura e, principalmente, de pensamento das mulheres tem revelado esse número. Revelado, porque ele sempre existiu.

Tem-se discutido bastante sobre educação para gênero e sexualidades nas escolas. Um debate muito intenso, no qual os setores mais conservadores da sociedade são veementemente contra estes conteúdos em sala de aula. A senhora acredita que a educação de gênero seja uma ferramenta para combater o machismo e outras opressões?

A questão de gênero é a ferramenta. Não existe outro caminho se a gente não incluir essa discussão na escola, porque a família simplesmente não vai fazer isso. São absurdos os projetos que tentam barrar esse progresso, não encontro palavras para qualificar. Não se trata de ideologia! São papéis muito bem claros, de uma situação que tem que ser discutida. Infelizmente existe esse jogo de linguagem, essa articulação que distorce toda a luta feminista, desqualificando os projetos. É como se fosse um contra-ataque a tudo que conquistamos até hoje, já que se a gente parar de falar, vamos retroceder. Se não houver aquele despertar da menina na escola, ela vai reproduzir aquilo que a mãe dela viveu. E a mãe dela vem de uma sociedade machista e patriarcal, quer dizer, não tem como mudar se o 'start' não for dado ali, no ambiente escolar. Veja só, quando a gente exemplifica casos de violência nas palestras, observamos muitas mulheres chorando. Ali é o 'start', quando elas percebem que estão sendo abusadas. Só que esse momento precisa ser antecipado, porque a gente só consegue atingir esse público depois de sofrido. Inclusive o homem! Eu tenho filhos e vim trabalhar nessa área em 2011. Eu posso te dizer como experiência que foi a partir de 2011 que eu pratiquei mudanças no meu comportamento, na minha forma de educar, porque o meu 'start' foi ali. É óbvio que eu não estava numa situação como a da mulher que reproduz machismo sem questionar, mas esse 'start' aconteceu em razão dessa discussão que eu tive que enfrentar e do contato com as redes sociais. É difícil, é algo que temos que caminhar muito.

Deixe seu Comentário

Leia Também