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Opinião

REFORMA TRABALHISTA. VALORIZAÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL E COLETIVA. NECESSIDADE DE INTERPRETAÇÃO À

15 outubro 2017 - 13h36Por Francisco das C. Lima Filho

Depois de muita polêmica e protestos de parlamentares de partidos de oposição ao Governo e entidades de representação dos trabalhadores e algumas Associações de Magistrados de Justiça do Trabalho, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Michel Temer, a Lei 13.467, de 13.7.2017, que entrará em vigor em 11.11.2017, introduzindo profundas alterações na velha Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e, por consequência, criando aquilo o que se poderia denominar de “um novo Direito do Trabalho brasileiro”.

Necessário assim tecer algumas considerações a respeito das bases jurídicas da nova Lei para que se possa compreender o que a seguir se defenderá. Nesse passo, vale lembrar que a chamada “Reforma Trabalhista” se encontra fundada essencialmente em duas grandes pilastras:

a) o reconhecimento e a valorização da autonomia individual visando permitir que trabalhadores e empregadores ou contratantes possam negociar diretamente sem necessidade da tutela, às vezes excessiva do Estado e para alguns, paternalista, em certas condições que regerão o contrato de emprego ou de trabalho; e

b) a valorização, o prestígio e a preferência da autonomia coletiva das categorias que terão, a partir da entrada em vigor da nova Lei, maior liberdade de negociar as condições a que se submeterão, na pressuposição de que ninguém mais do quem trabalha e se apropria dos frutos do labor, os verdadeiros atores do processo produtivo, têm mais e melhores condições de conhecer suas próprias necessidades e realidades.

E para se constatar esse fato, basta se analisar os vários dispositivos valorizando a autonomia individual do trabalhador e do empregador para convencionar diretamente por meio do diálogo e da negociação vários direitos, inclusive fora do padrão posto pelo Estado, desde, é claro, que não se achem marcados pelo caráter da indisponibilidade absoluta, como, por exemplo, aqueles ligados à jornada, salários e outras condições de trabalho, dando-se prevalência aquilo que se tem denominado de “convencionado sobre o legislado” (art. 611-A da CLT acrescido pela nova lei).

Como se vê, o legislador partiu do pressuposto que aos atores da relação de emprego ou de trabalho e às categorias a que integram, deve ser garantido o direito de negociar, especialmente por meio da autonomia coletiva, aquilo que entendam seja mais conveniente e aproximado de suas próprias realidades como, aliás, reconhecido Excelso Supremo Tribunal no julgamento do RE 590.415-SC, ao deixar assentado no voto do Ministro Luis Roberto Barroso:

A negociação coletiva é uma forma de superação de conflito que desempenha função política e social de grande relevância. De fato, ao incentivar o diálogo, ela tem uma atuação terapêutica sobre o conflito entre capital e trabalho e possibilita que as próprias categorias econômicas e profissionais disponham sobre as regras às quais se submeterão, garantindo aos empregados um sentimento de valor e de participação. É importante como experiência de autogoverno, como processo de autocompreensão e como exercício da habilidade e do poder de influenciar a vida no trabalho e fora do trabalho. É, portanto, um mecanismo de consolidação da democracia e de consecução autônoma da paz social. O reverso também parece ser procedente. A concepção paternalista que recusa à categoria dos trabalhadores a possibilidade de tomar as suas próprias decisões, de aprender com seus próprios erros. [1]

Esse entendimento também foi acolhido pela Excelsa Corte no julgamento do RE 590.415-SC a respeito da validade da negociação coletiva limitando para efeitos de pagamento as horas in itinere, numa clara demonstração que antes mesmo da edição da Lei 13.467/2017, se prestigiava a autonomia coletiva das categorias para, por meio do mecanismo da negociação coletiva, superar o conflito com estabelecimento de normas que atendam a realidade dos trabalhadores e empregadores.

E essa autonomia para negociação foi também reconhecida e prestigiada no campo individual à medida que a nova Lei permite que o trabalhador e empregador possam, em dadas situações, negociar e convencionar fora do padrão legal vários direitos como, por exemplo, banco de horas (art. 59, §§ 5º e 6º), intervalo para amamentação da mulher lactante (art. 396, § 2º), fracionamento de férias, alteração do trabalho presencial para teletrabalho (art. art.75-C, § 2º) e até mesmo tacitamente outros direitos, estimulando um louvável processo de diálogo e de negociação direta sem intervenção estatal e até mesmo da entidade sindical. Tanto assim, que criou a representação do trabalhador na empresa, como um espaço para esse diálogo direto (510-A acrescido à CLT pela citada Lei), regulamentando o que se encontra previsto no art. 11 da Carta da República e na Convenção 135 da OIT, tornando realidade aquilo que o constituinte de 1988, fundado no pluralismo democrático, pretendeu, não constituindo qualquer ameaça ao relevante papel social e político do sindicato que em verdade deve agir em cooperação com a representação dos trabalhadores na empresa (art. 5º da aludida Convenção Internacional).

É evidente, todavia, que a autonomia coletiva exige a presença de sindicatos fortes e representativos com capacidade de negociar com as empresas ou empregadores dentro de certos parâmetros e de equilíbrio de forças, o que infelizmente no Brasil, salvo algumas exceções, não ocorre, pois ainda temos o sindicato organizado com base na categoria fundado no princípio unicidade exigindo-se para que possa adquirir a capacidade de representação o registro no órgão competente do Estado, em absoluta falta de sintonia com os princípios e normas da Organização Internacional do Trabalho - OIT, especialmente com o disposto na Convenção 87 que até o momento não foi ratificada pelo Brasil, o que torna o sindicato uma entidade de certa forma dependente o Estado para poder atuar.

Mesmo assim, e em que pese o previsto na nova Lei, tanto a autonomia individual como a coletiva não são absolutas como, aliás, nenhum direito ou liberdade o é. Ao contrário, embora reconhecida pelo Texto Maior (arts. 7º, inciso XXVI e 8º) encontra limites na proteção daquilo que doutrinariamente se convencionou denominar de padrão mínimo civilizatório, constituído pelo conjunto de direitos garantidos pela Carta da República, especialmente aqueles elencados nos arts. 7º e seguintes da Carta, quase todos marcados pelo caráter da indisponibilidade e que, em obséquio ao princípio vedatório do retrocesso social [2] , previsto nos arts. 7º do Texto Supremo e 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica [3] - não podem ser retirados, ainda que mediante negociação coletiva, Todavia, isso não implica afirmar que não possam ser “flexibilizados” em homenagem ao princípio da adequação setorial negociada, mas sempre respeitado o núcleo essencial [4] do próprio direito.

Assim, tanto a autonomia individual como coletiva, têm balizas que uma vez não observadas, poderá anular o que negociado. É com essa visão que pensamos deverão ser interpretadas as disposições contidas na Lei 13.467/2017 que como toda obra humana não é perfeita necessitando de interpretação, o que certamente a jurisprudência saberá fazer de forma equilibrada como sempre o fez.

De fato, e como tivemos oportunidade de afirmar em dado momento, a negociação coletiva “não é apenas uma das faculdades inerentes ao exercício da liberdade sindical, é, além disso, a fonte ou o método que esses entes coletivos adotam para regular suas recíprocas relações, encontrando-se presente na própria sociedade e cujos titulares são os sujeitos representativos de interesses contrapostos que são transladados para o plano do Direito por meio do mecanismo da juridificação. Portanto, é uma fonte que, desse modo, resulta estabelecida no mesmo nível ou plano dos poderes do Estado para ditar outras normas, também as que disciplinam alguns aspectos das relações de trabalho, o que significa que a contratação coletiva não deve balizar-se em certas ocasiões aos parâmetros legais” [5] . Por conseguinte, não pode ser erigida em um cheque em branco para se negociar o que bem se entender, contrariamente o que alguns desavisados têm entendido.

É nessa perspectiva que se deve analisar e interpretar a Lei 13.467/2017 e não como apressadamente andaram defendendo alguns sem uma maior reflexão a respeito do alcance e dos limites que o Texto Maior e a própria Lei impõe, mas também sem maniqueísmos ou posições corporativas ou ideológicas exacerbadas, quase sempre que apenas vêem na Lei o lado negativo.

Na verdade, o alcance da nova Lei apenas será revelado com sua aplicação prática que não pode jamais ser no sentido de achar que ela é perfeita, mas também sem nela ver apenas os aspectos negativos. E isso não implica que se tenha de aplicá-la tal qual como pretendeu o legislador; antes, deve ser interpretada e aplicada à luz dos valores e princípios previstos na Constituição da República e nos Tratados e Normas Internacionais especialmente aqueles de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.

É isso que com certeza acontecerá.

O autor é Desembargador do TRT da 24ª Região, Mestre e Doutor em Direito Social pela Universidad Castilla-la Mancha (Espanha) e Professor em pós-graduação em Direito do Trabalho na UCDB (Campo Grande – MS) 

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[1] Como pondera Maurício Godinho Delgado, “não há Democracia sem que o segmento mais numeroso da população geste uma sólida e experimentada noção de autotutela e concomitantemente, uma experimentada e sólida noção de responsabilidade própria. No primeiro caso, para se defender dos tiranos antipopulares; no segundo caso, para não se sentir atraído pelas propostas tirânicas populistas”. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2011, p. 117.

[2] Lembra Gomes Canotilho que “os direitos sociais e econômicos (direitos dos trabalhadores, à assistência, à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A proibição do retrocesso social nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fática), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos”. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p.336-337. 337.

[3] Ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992.

[4] Lembra Humberto Virgilio Afonso da Silva, fundado em Konrad Hesse, que proteger o núcleo essencial de um direito fundamental implica proibir restrições à eficácia desse direito que o tornem sem significado para todos os indivíduos para boa parte deles. SILVA, Virgilio Afonso da. Direito Fundamentais. Conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 185.

[5] LIMA FILHO, Francisco das C. Negociação Coletiva e boa-fé. O princípio no ordenamento jurídico brasileiro e espanhol. Curitiba: Editora DT, 2008, p. 28-30 e 89-90.